58 + 57 faixas.... "stop!" + "time" -- J DILLA aka JAY DEE -- Donuts (2006)
A memória e as recordações são um património preservado nos mais diferentes formatos. Há quem se reveja em recortes de jornais; há quem tente viver experiências uma segunda (e terceira, e quarta…) vez ao reler passagens de um diário, há inclusivamente quem se deleite a construir caixas de recordações onde tanto cabem bilhetes de barco (interilhas, y’all!) como folhas de azinheira alentejana. São opções…
Há, no entanto, quem prefira usar a memória auditiva em detrimento de todas estas e muitas outras formas. O que equivale a dizer que há quem faça do seu espólio musical – não na perspectiva de composição, mas sim de vivência – o barómetro das suas experiências e sensações, e da vida a sua mixtape. Não é que a memória musical sofra de um qualquer síndrome de mútua exclusividade em relação a todas as outras formas de identidade, mas a verdade é que há músicas que, mais do que suportarem o teste do tempo, o vencem categoricamente.

Convenhamos que, até para o mais dotado dos compositores, este espólio geralmente é constituído por obras de terceiros. Fragmentos de músicas que, inexplicavelmente, se nos colam à pele; trechos de letras que, por um acaso sinistro, parecem ter sido resgatadas da ponta da nossa própria língua; sons que, aos poucos, pilhamos à memória colectiva ao ponto de os considerarmos só nossos.
Confiando no poder da revisitação musical, J Dilla – aka Jay Dee – fez-se valer da sua imensa colecção de referências – arquivadas em finas rodelas vinílicas – para construir aquele que será, na menos optimista das hipóteses, o SEU álbum de audiogramas. A hipótese mais optimista e, curiosamente, realista, aponta para uma obra maior dum pequeno e genial artesão musical. Mas a genialidade já conheceu melhores dias e essa conversa já não convence muita gente. Há que tentar outros argumentos.
Jay Dee, reputado arquitecto dos beats e figura fundamental (apesar de discreta) do hip hop norte-americano, abriu o livro das recordações, agarrou-se aos discos da sua vida e emprestou-lhes a sua visão de produtor. Cada uma das 31 faixas que compõem este álbum acaba por ser uma pequena viagem no tempo; como se, de repente, a Motown fosse outra vez a editora mais importante do mundo.

Seja ou não a Motown a editora mais citada neste álbum (não o é) o que parece indiscutível é que a paixão da vida de Dilla – para além do hip hop – sempre foi a soul, conclusão que encaixa particularmente bem no sentido em que este álbum é sem a mais pálida sombra de dúvida, um colosso de alma. Dadas as circunstâncias e o produtor em questão, nunca poderia ser doutra forma.
Dilla faleceu poucos dias depois da edição de Donuts, vítima de doença prolongada – uma boa parte dos temas foi, inclusivamente, produzido na cama do hospital. Sabendo do pouco tempo que lhe restava, Dilla optou por gravar uma pujante homenagem a essa massa volátil e altamente apaixonante que é a soul e fez um disco para si que é, como toda a boa soul, um disco para todos.

J DILLA aka JAY DEE "stop!" ; "time: the donuts of the heart"
PS :: um grande, grande, graaaaande obrigado à artista residente pelas inspiradas ilustrações! Mais se seguirão.