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12.2.06

66 Faixas.... "The Wings" -- GUSTAVO SANTAOLALLA -- Brokeback Mountain OST (2005)


Não é particularmente difícil aferir do valor de uma banda sonora. Algumas bandas sonoras vivem para as imagens, e delas dependem absolutamente, outras bandas sonoras são perfeitamente autónomas, respiram o seu próprio ar e suportam bem uma existência sem tela. Não compreendo no entanto que alguém possa gostar verdadeiramente de uma banda sonora sem a apreciar no contexto para o qual ela foi pensada – e reparem que aqui não estou propriamente a pensar em compilações preparadas para filmes, mas antes em trilhas sonoras inspiradas num argumento, numa short story, num livro, no que quer que seja. É que, ao longo dos tempos, vários foram os que se especializaram em encher de som os sonhos e pesadelos que outros traduziam em planos, fotografia, cortes, representação… Da relação potencialmente simbiótica entre a película e a trilha sonora, ou melhor, da alegre e estimulante mixórdia música/imagem, já nasceram momentos de cinema inesquecíveis e obras musicais incontornáveis.

Anda pelas salas um filme sobre um amor improvável. Não é um amor impossível, que desses não existem. É um filme sobre um amor improvável. Como improvável é a autoria da sua banda sonora. Gustavo Santaolalla foi o homem escolhido para musicar Brokeback Mountain de Ang Lee, depois de mostrar créditos em Diarios de Motocicleta de Walter Sales e em 21 Grams e Amores Perros de Alejandro Iñarritú. Quem viu estes filmes deve saber à partida que ~este argentino não faz questão de roubar espaço à imagem. A sua música vive confortável e respeitavelmente num segundo plano: por trás da tela, mas atenta ao que nela se passa. Aos arranjos de guitarra inspirada/levemente latina alia-se a eloquência de arranjos cinematográficos – no bom sentido da expressão – que ora puxam para o lado épico, ora forçam momentos de sobriedade e acalmia para atmosferas minimalistas. Até aqui nada de novo.

Comecei por referir dois grandes tipos de bandas sonoras, em função da relação que estas constroem com o filme para o qual são compostas. Passados dois parágrafos refiro um terceiro tipo que destrói positivamente a definição inicialmente proposta. Gustavo Santaolalla é, por mérito próprio, parte fulcral do filme Brokeback Mountain. Não que apareça na tela, ou que tenha contribuído de alguma forma para a direcção de actores ou para a cenografia. Nada disso… Santaolalla simplesmente não se limitou a cumprir as suas funções, e tornou-se parte activa e participativa do enredo. Como? É simples. Enquanto nós passamos a vida inteira à procura de uma banda-sonora ideal para a nossa vida, Santaolalla precisou apenas de meia-dúzia de instrumentais para perceber qual a banda-sonora ideal para a vida deste filme, que dele se torna, numa palavra, indissociável. Cada plano deste filme está colado à composição que o adorna, e cada nota desta composição está colada ao plano que a suporta. Confuso? Talvez. Afinal, estamos a falar da aspiração máxima de um compositor de bandas sonoras. Algo que anda perto de uma fusão – que serve bem a máquina de sonhos que o cinema tenta ser. Talvez não haja mesmo nada de particularmente novo por aqui. Mas há, de certeza, algo de memorável.

Gustavo Santaolalla "The Wings"

[Felizmente para mim, não ouvi este instrumental antes de ver o filme e não quero que isso vos aconteça. Por isso, e para evitar SPOILERS, guardem este pedaço de arte para depois de irem ao cinema. Tratem-se bem, vejam o filme.]

8.2.06

68 + 67 Faixas.... "curls" + "great day" -- MADVILLAIN -- Madvillainy (2004)

Juan Muñoz, artista madrileno que faleceu recentemente, dedicou parte considerável da sua vida a dar corpo a esculturas pejadas de um imenso simbolismo, estruturadas de forma a suportar mensagens assumidamente subliminares. Não é difícil depreender isto da sua obra: rostos enigmáticos, corpos emotivos e, para seu (e nosso) principal deleite, subversões (devidamente camufladas) dos pormenores arquitectónicos que enchem o nosso quotidiano.


Muñoz tinha por hábito espalhar corrimões nas galerias de arte em que expunha as suas esculturas. Parte destes corrimões eram vulgares, com corpo em madeira e suportes em metal escuro. No entanto, misturados com esses corrimões vulgares, Muñoz gostava de espalhar aquilo a que se hipoteticamente poderia chamar de corrimões upgrade. No fundo, Muñoz imprimia uma ligeira e hiperbólica curvatura aos corrimões, obrigando o corpo do corrimão a aproximar-se excessivamente – na óptica do utilizador – da parede que o suportava, ficando o corrimão separado por poucos milímetros da parede. O resultado desta aplicação era curioso: os visitantes apoiavam-se no corrimão e, a meio do percurso, viam a sua mão ficar presa no estreitamento, o que as obrigava, invariavelmente, a largar o corrimão. É uma obra simples que se torna maior quando devidamente interpretada. O corrimão era utilizado por Muñoz como peça simbólica da relação de aparente segurança (e controlo) que o homem tenta ter com a realidade que o rodeia. O corrimão enquanto conforto, domínio, e arte suprema de ponderar o imponderável. O debate desta visão – preconizada pelo próprio autor – é material para livro, e não para este blog.


Então em que medida é que interessa citar Muñoz num post sobre Madlib? Interessa porque Madlib é um produtor subversivo, de recursos irregulares e imprevisíveis, que hasteia a bandeira do hip hop (invés da bandeira da escultura) para fazer passar mensagens musicais maiores e, sobretudo, inesperadas. Interessa porque é na queda de dogmas sobre a criação musical que se valida o som de Madlib, porque é a partir de tudo o que já foi feito e que se encontra facilmente disponível que ambos estes autores se propõem a espalhar uma mensagem inconformada sobre a criação.

Imaginemos uma cave numa antiga casa colonial, algures no interior Americano: chapéus de palha empoeirados, latas de óleo Shell enferrujadas, livros empilhados e, com sorte, dois ou três caixotes cheios de vinilos perdidos no tempo, no espaço, e na amálgama indefinida e nada criteriosa que é a amnésia colectiva. Tentemos agora imaginar um modesto apartamento no Bronx nova iorquino, involuntariamente minimalista que, por entre escombros, esconde uma prateleira de discos repleta de glórias perdidas da soul e de gravações protagonizadas por formações obscuras de funk e sessões efémeras de Jazz. Passemos agora por uma pequena loja de discos na portobello londrina, especializada em inéditos e em material exótico, uma loja que pega nos primórdios do calypso e os coloca lado a lado com edições limitadíssimas de bandas sonoras de um bollywood perdido.

É fundamental compreender que Madlib percorre estes e outros locais para, numa primeira fase, adornar a sua visão musical e os seus múltiplos projectos de méritos simultaneamente antropológicos e sonoros (ver também jaylib e yesterday’s new quintet – curiosamente, um combo composto por um quinteto de madlibs). É fundamental perceber que a elaborada trama de citações – de terceiros ou em nome próprio – que Madlib monta em cada uma das suas peças musicais reflecte uma imensidão de realidades: a realidade do próprio produtor, a realidade da fonte que sampla, a realidade de quem com ele resolve rimar. Tudo isto não passaria de um exercício inconsequentemente revivalista se não fosse a inspiração de Madlib: a frescura dos seus beats, a originalidade das harmonias arrancadas a um fender rhodes de estimação, a refutação do óbvio e a citação de si mesmo e de tudo o que povoa o seu imaginário (a samplagem é, sem dúvida nenhuma, uma manifestação pessoal). Assim se constrói uma imensa pertinência actual e a sobranceira distinção duma sonoridade intemporal.

As produções de Madlib são frequentemente antecedidas por um aviso “yet another Madlib Invasion”. Faz sentido, faz todo o sentido. Porque a música que Madlib dá ao mundo é invasora e reivindicativa, é música que impõe de forma praticamente ditatorial uma visão própria do mundo. Madlib só não assinou aqui – a meias com MF DOOM – o melhor álbum de hip-hop da última década porque, ao longo do processo criativo, este deixou de ser um álbum de hip hop. Saúde-se o trabalho de alguém que passa bem sem os princípios que lhe são impostos para atingir o seu – e só seu – fim.


Madvillain (Madlib + MF DOOM) "curls" + "great day"