Image hosting by Photobucket

16.9.06

52 faixas…. “empty cans” – the STREETS – a grand don’t come for free (2004)

Escrever sobre the Streets em 2006 não pode ser mais do que um exercício de consagração. Se fosse para bradar aos ventos a chegada de um génio urbano sem par, estaríamos a chegar com um atraso de quatro anos. Ainda assim, e apesar do nem1nome nunca ter vivido na ilusão de fixar movimentos ou de apontar tendências, interessa perceber porque é que este act britânico é tão essencial no aqui e agora.

Antes de tudo, o som. Contextualizando, refira-se que as batidas dos Streets se enquadram na amálgama de descendentes do uk garage que actualmente merece a designação de grime. Herda deste estilo um som sujo, frio e poluto, apropriação bastarda do modus operandi e ferramentas do hip hop que canta o quotidiano de uma classe média/baixa britânica embrutecida e em delicado equilíbrio no eixo emprego/drogas/álcool. Batidas agressivas, palavras sentidas e pouco medidas e sobretudo uma honestidade e discernimento raríssimos no mundo perversamente teatral da música (e não só, claro). Os textos andam única e exclusivamente à volta daquilo que é a vida de Mike Skinner, mentor, executante e compositor que encarna essa colectividade singular que são “os” Streets.

E o que é a vida de Mike Skinner? É roupa que encolhe por ter sido lavada à temperatura errada, é a dor esmagadora de ser rejeitado por quem se ama, é uma noite passada em casa entre a playstation e mortalhas encardidas. Ou seja, um calabouço de vulgaridade que, apesar de devidamente enquadrado na realidade geezer, se exporta sem dificuldade para outras e próximas realidades. Sucumbindo à tentação de pegar em metáforas baratas e brejeiras, dir-se-ia que Skinner conseguiu fazer assentar na perfeição o smog que tantas vezes se faz sentir em Londres – o epicentro deste movimento – sobre a sua sonoridade, e empresta-nos agora a sua versão revista desse nevoeiro contaminado.

Mike Skinner apresentou-se ao mundo com aquele que será, para muita e boa gente, um dos álbuns mais marcantes do início do novo milénio. O nome escolhido para o álbum foi original pirate material e, mais do que se impor a si próprio, deu visibilidade a uma nova linguagem urbana. Original Pirate Material é um punhado de canções acessíveis e exemplarmente inspiradas, adornadas com roupagens que até há bem pouco tempo seriam consideradas menos familiares. Músicas invariavelmente cantadas na primeira pessoa (mesmo que por vezes haja espaço para a contemplação distante) e impressionantemente certeiras, tanto nas batidas como nas palavras que reflectem o quotidiano britânico com um detalhe deliciosamente irregular.

O presumivelmente difícil segundo álbum (no qual se inclui a música que aqui se disponibiliza) conseguiu a proeza de subir a parada. As canções continuam lá, a acutilância da palavra e da produção também, mas Skinner acrescentou ao álbum uma uma identidade narrativa que percorre as onze faixas de a grand don’t come for free e que o eleva, sem o mínimo exagero, ao estatuto de épico. Simplificando, este álbum conta uma história. Uma história em 11 tomos que gira, sempre, em torno de Skinner. A coerência é tão essencial à audição deste álbum que desrespeitar a cronologia dos eventos (leia-se: das faixas) esvazia, dramaticamente, o sentido e impacto da coisa.

A história de a grand don’t come for free? Só ouvindo. Forneçam-se alguns elementos para alimentar a curiosidade: longas filas de espera em caixas multibanco, uma paixão arrebatadora, multas de clubes de vídeo, junk food comprada numa roullote a meio da noite e, como em tudo, amor e desilusão. Vulgar? Nem por isso… há muito que cantar a vulgaridade deixou de ser vulgar.
Ao longo das primeiras dez faixas acontece um pouco de tudo ao nosso pobre companheiro. Para o caso interessa apenas referir que este canalha chega completamente devastado à décima faixa, de coração trinchado, sem saber das suas poupanças, com a televisão avariada e com um par de intrigas mal resolvidas entre si e o seu melhor amigo. A faixa que aqui fica é um testemunho da comovente sinceridade do tipo que escreve estas músicas e é especial porque verbaliza o beco sentimental que tantas vezes habitamos e que não conseguimos ou não queremos assumir. Esta coragem displicente é, afinal, o que separa Skinner de tantos outros comuns mortais que se lançam no mundo da música. Mais humano que isto? Impossível.

Esqueça-se a veia rocambolescamente descritiva de Morrissey (a quem tantas vezes este rapaz é comparado) ou a generosidade de Albarn por alturas de Parklife e compreenda-se que Skinner não toma a decisão consciente de descrever o que o rodeia. Fala do telemóvel porque ficou sem rede, malha nas luzes da discoteca porque está completamente pedrado, não consegue abrir os olhos e vê-se aflito para alinhar dois passos sem cair para cima de alguém. Não há propriamente um método descritivo, não há uma tomada de decisão no sentido de reconstruir a realidade que o rodeia. É movimentando-se nessa necessidade de contextualização para tudo o que lhe toca que Skinner atinge a plenitude do mérito descritivo. Não descreve por descrever, descreve porque precisa da descrição para se fazer compreender.

Retomando a situação de Skinner à décima faixa, e perante o cenário – catastrófico e, no entanto, tão dolorosamente comum – a décima primeira faixa apresenta dois desfechos possíveis. Se vos vieram à cabeça as novelas com direito a votação telefónica para decidir entre final triste vs final feliz, retomem a leitura do parágrafo do texto em que se fala de honestidade desarmante. Final feliz? Nem por isso. Expliquemos porquê:

Ao longo dos primeiros três minutos de faixa temos um skinner revoltado com a vida, feito filho-da-puta ressabiado, disposto a lixar a vida a toda e qualquer pessoa que lhe azucrinar o juízo – o que, tendo em conta o estado de espírito apresentado, só pode querer dizer toda a gente que se cruzar com ele. Nesta primeira abordagem, Skinner opta por viver de costas voltadas para o mundo e afoga-se em auto-comiseração: o negrume que o envolve e que envolve tudo o que o rodeia, a fossa no seu estado mais puro e cego de raiva.


“So here i am in my house, drinking on my own settee; Everyones a cunt in this life, no-one's there for me.”

No entanto, aos 3 minutos e picos de gravação alguma coisa muda. A faixa entra em rewind e tudo recomeça, desta vez com um piano quase apaziguador a envolver as palavras ligeiramente mais calmas de skinner. Diferente? Aparentemente pouco. Afinal, o tipo continua de coração desfeito e isso – apesar de tudo – é o único motivo capaz de, por si só, lhe cavar a fossa. Mas há efectivamente alguma coisa que muda: talvez a predisposição. Skinner começa igualmente desesperado, mas deixa a esperança respirar um pouco e resolve dar mais uma oportunidade ao seu amigo que, voluntária ou involuntariamente, acaba por resolver tudo o que pode resolver na vida de Skinner (arranja-lhe a tv, já não é nada mau). A moça, essa, foi-se mesmo embora. O mesmo não se pode dizer da dor de corno que é virtualmente igual nos dois potenciais finais. O segundo desfecho consegue tranquilizar um pouco porque admite a tal entrada discreta de alguma dose de esperança: se a porca miséria continua lá, a verdade é que à segunda versão ficamos com a impressão que um dia vai passar. Skinner tenta pôr de lado a cegueira, arrisca e faz por digerir o que aconteceu e aceita que os tempos que se avizinham vão ser difíceis, mas – imaginamos – até é capaz de se vir a safar. Magoado para a vida, sofredor como todos, mas com força para se levantar.

É assim mesmo… Não há nenhum final feliz a relatar, nenhum regresso inesperado da amada – acabou, mesmo – nenhuma reviravolta final para nos deixar (ilusoriamente) aliviados. Não. A dor de corno persiste, mas todos sabemos que há mais do que uma maneira de lhe dar a volta. É engraçado e louvável que seja um genuíno mitra de Londres a indicar-nos o caminho. Livros de auto-ajuda? Estimemos que se fodam. Em caso de necessidade, entreguemo-nos a estes 8:14 de sabedoria amargurada do nosso Skinner boy.

EMPTY CANS