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8.2.06

68 + 67 Faixas.... "curls" + "great day" -- MADVILLAIN -- Madvillainy (2004)

Juan Muñoz, artista madrileno que faleceu recentemente, dedicou parte considerável da sua vida a dar corpo a esculturas pejadas de um imenso simbolismo, estruturadas de forma a suportar mensagens assumidamente subliminares. Não é difícil depreender isto da sua obra: rostos enigmáticos, corpos emotivos e, para seu (e nosso) principal deleite, subversões (devidamente camufladas) dos pormenores arquitectónicos que enchem o nosso quotidiano.


Muñoz tinha por hábito espalhar corrimões nas galerias de arte em que expunha as suas esculturas. Parte destes corrimões eram vulgares, com corpo em madeira e suportes em metal escuro. No entanto, misturados com esses corrimões vulgares, Muñoz gostava de espalhar aquilo a que se hipoteticamente poderia chamar de corrimões upgrade. No fundo, Muñoz imprimia uma ligeira e hiperbólica curvatura aos corrimões, obrigando o corpo do corrimão a aproximar-se excessivamente – na óptica do utilizador – da parede que o suportava, ficando o corrimão separado por poucos milímetros da parede. O resultado desta aplicação era curioso: os visitantes apoiavam-se no corrimão e, a meio do percurso, viam a sua mão ficar presa no estreitamento, o que as obrigava, invariavelmente, a largar o corrimão. É uma obra simples que se torna maior quando devidamente interpretada. O corrimão era utilizado por Muñoz como peça simbólica da relação de aparente segurança (e controlo) que o homem tenta ter com a realidade que o rodeia. O corrimão enquanto conforto, domínio, e arte suprema de ponderar o imponderável. O debate desta visão – preconizada pelo próprio autor – é material para livro, e não para este blog.


Então em que medida é que interessa citar Muñoz num post sobre Madlib? Interessa porque Madlib é um produtor subversivo, de recursos irregulares e imprevisíveis, que hasteia a bandeira do hip hop (invés da bandeira da escultura) para fazer passar mensagens musicais maiores e, sobretudo, inesperadas. Interessa porque é na queda de dogmas sobre a criação musical que se valida o som de Madlib, porque é a partir de tudo o que já foi feito e que se encontra facilmente disponível que ambos estes autores se propõem a espalhar uma mensagem inconformada sobre a criação.

Imaginemos uma cave numa antiga casa colonial, algures no interior Americano: chapéus de palha empoeirados, latas de óleo Shell enferrujadas, livros empilhados e, com sorte, dois ou três caixotes cheios de vinilos perdidos no tempo, no espaço, e na amálgama indefinida e nada criteriosa que é a amnésia colectiva. Tentemos agora imaginar um modesto apartamento no Bronx nova iorquino, involuntariamente minimalista que, por entre escombros, esconde uma prateleira de discos repleta de glórias perdidas da soul e de gravações protagonizadas por formações obscuras de funk e sessões efémeras de Jazz. Passemos agora por uma pequena loja de discos na portobello londrina, especializada em inéditos e em material exótico, uma loja que pega nos primórdios do calypso e os coloca lado a lado com edições limitadíssimas de bandas sonoras de um bollywood perdido.

É fundamental compreender que Madlib percorre estes e outros locais para, numa primeira fase, adornar a sua visão musical e os seus múltiplos projectos de méritos simultaneamente antropológicos e sonoros (ver também jaylib e yesterday’s new quintet – curiosamente, um combo composto por um quinteto de madlibs). É fundamental perceber que a elaborada trama de citações – de terceiros ou em nome próprio – que Madlib monta em cada uma das suas peças musicais reflecte uma imensidão de realidades: a realidade do próprio produtor, a realidade da fonte que sampla, a realidade de quem com ele resolve rimar. Tudo isto não passaria de um exercício inconsequentemente revivalista se não fosse a inspiração de Madlib: a frescura dos seus beats, a originalidade das harmonias arrancadas a um fender rhodes de estimação, a refutação do óbvio e a citação de si mesmo e de tudo o que povoa o seu imaginário (a samplagem é, sem dúvida nenhuma, uma manifestação pessoal). Assim se constrói uma imensa pertinência actual e a sobranceira distinção duma sonoridade intemporal.

As produções de Madlib são frequentemente antecedidas por um aviso “yet another Madlib Invasion”. Faz sentido, faz todo o sentido. Porque a música que Madlib dá ao mundo é invasora e reivindicativa, é música que impõe de forma praticamente ditatorial uma visão própria do mundo. Madlib só não assinou aqui – a meias com MF DOOM – o melhor álbum de hip-hop da última década porque, ao longo do processo criativo, este deixou de ser um álbum de hip hop. Saúde-se o trabalho de alguém que passa bem sem os princípios que lhe são impostos para atingir o seu – e só seu – fim.


Madvillain (Madlib + MF DOOM) "curls" + "great day"