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19.12.07

49 faixas.... "family feud" :: VON SÜDENFED :: Tromatic Reflexxions (2007)



É cretinamente delicioso chegar ao final de Dezembro e perceber que há um e um único candidato à posição de MC do ano. Posição a ser ocupada por um tipo de não-tão-tenra idade, com um passado (e presente) de arestas bem fendidas por riffs de guitarra, digno ostentador do signo do chauvinismo europeu (com uma ácida agravante chamada Reino-Unido pelo meio). O feliz contemplado com o dito título reencontrou o seu espaço naquele que será o álbum do ano e, pisando sem receios o terreno da musicologia astrológica, do novo milénio. Um álbum, no limite, de electrónica alemã que assinala – sob o risco de instalar uma tempestade estética no ouvinte mais atento – o renascimento do punk!


A história dos 3 acordes pode ser desde já subtraída da equação e na verdade não há que ter receio do caos de referências: os Von Südenfed são nossos amigos e foi com coerência e propriedade que em 2007 fizeram o punk soar ao que sempre devia ter soado. Usam samplers, sintetizadores e parafernália auxiliar (guitarras, claro), atropelam o ouvinte com electrónica enxuta que suporta a melhor neofilologia britânica e fazem a geração digest nu-rave/punk disco corar de vergonha por ser… bem… o que é. Assim como o mais inspirado hip hop, big beat favelado e alguma IDM (Inteligent Dance Music; célebre etiqueta musical que com três letrinhas apenas nos transforma a todos em potenciais imbecis), o espaço sonoro que este trio explora é industriado em batidas originais e na coerente combinação de blips/bloops com palavras suficientemente desconexas para manterem o ouvinte atento e demasiado certeiras para o deixarem alhear-se.


Von Südenfed encaixam na lógica de super-grupo: são o resultado da união de duas pontas que, a bem da verdade, andavam à deriva no marasmo da actualidade musical. De um lado o duo-dinâmico Mouse on Mars (electrónica de inspiração bíblica, apocalipticamente falando), do outro lado o über carismático Mark E Smith, vocalista dos Fall, banda que durante os anos 80 assumiu a função prevaricadora da mais atenta e bocejante inteligenzia britânica. À produção basculante e obesa dos MoM, Smith reage com frases semi-conexas, instigação q.b. e com sentidos quase despertos. Um toaster jamaicano de fígado arruinado e enfadado de morte. Um novelo a várias cores; uma presumível montanha de incongruência que pariu um filho bastardo, mas assertivo.


O nome do grupo é, em si, um décimo-primeiro canto para os Lusíadas. Em termos rasteiros, dir-se-ia que resulta da combinação do nome de uma aldeia alemã (que é referência familiar para metade dos Mouse on Mars) com nome de xarope de tosse. É verdade, mas serve também de útil introdução à ilusória displicência com que estes três músicos encaram o processo criativo. Ilusória porque Von Südenfed é um exercício pleno de premeditado desequilíbrio em que o deboche dos beats (hip hop lango, yo!) convida um presunçoso Mark E Smith a acelerar vocalizações – quase impossível para quem tem tanto para não dizer em tão pouco tempo – e em que o fledermaus tenta a todo o custo impingir uma guitarrada ou outra e estrebucha para que os alemães excessivamente excitados o deixem falar.



Bem-vindos pois a Tromatic Reflexxions, primeiro tomo de uma nova irmandade transeuropeia. Um portento de um álbum em toda a sua extensão: Fledermaus can’t get it abre as hostilidades e cumpre sobriamente (permitam-me: lol) o papel de declaração de intenções – confiram o tom sóbrio no
videoclip que deu desde logo nova profundidade ao projecto. Flooded é o hino de toda uma não-geração, a acendalha que possibilitou o regresso em pornográfica forma do Mark E Smith, que aproveita desde logo para reclamar os louros que outros lhe andaram a pilhar nos últimos anos. Por outros, e na integrada visão de Mark E Smith, entenda-se toda a corja de filhos de puta ressabiados que, armados em necrófagos culturais, vivem tão-somente à custa do imenso espólio/legado de sua E.minência. Majestosamente britânico. Mas nem só de dinamite se faz Tromatic Reflexxions R. Há espaço para jardinagem e reflexões sobre a neoescravatura (JBack Lois Lane), para um ensaio sobre a fobia alemã de Osterre, para o verdadeiro regresso dos Fall (The Rhinohead), para sessões de tareia à antiga, para duas ou três notas culinárias e para a inigualavelmente humana Dear Dead Friends.

É relativamente ingrato destacar faixas num álbum que – saltem o parágrafo vivem bem sem clichés – consegue ser tão maior que a soma de cada uma das suas doze partes. Daí que a faixa que a partir de hoje se disponibiliza no nem1nome tenha sido seleccionada por uma funcionalidade do iTunes. Quis o destino – também conhecido como shuffle – que ficasse tudo em Family Feud.



Seja o que for que os Von Südenfed representam hoje em dia (resulta relativamente óbvio que não é fácil posicionar este álbum) ou que irão representar daqui a uns quantos anos, já fizeram o favor de deixar em domínio público um colossal monumento à capacidade europeia de transformar e capitalizar sobre ruínas – musicais, para o caso. Fizeram-no com particular classe, ao ponto de as tornarem pertinentes outra vez. Talvez a pretensão não seja nova (a estética é), mas o resultado obtido é impecavelmente fresco. Tudo em nome do Progresso, da Arte e de uns quantos litros de Suor. Na sua democrática essência: punk.


VON SÜDENFED :: FAMILY FEUD


PS :: Muito agradecido ao André (fluríco) que me deu Von Südenfed a ouvir, e à Isabel, que me deu ombro para chorar quando, no concerto de Von Südenfed na Apolo em Barcelona, o Mark E Smith resolveu fazer a coisa mais punk que se pode fazer num concerto: não aparecer. We’re European Scum!

13.1.07

2006, uma (pequena) lista de discos
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É um blog meio moribundo este que para aqui anda, bem sei, mas ainda está a umas boas 49 faixas de desaparecer. Sem pressas. Ainda não é desta que vão regressar os textos de adoração sobre um qualquer novo ou velho mito musical, mas não queria deixar de partilhar a lista das minhas preferências musicais de 2006 com quem continua a visitar o nem1nome. Não são os melhores de 2006 – isso, felizmente, não existe – mas são os álbuns que mais, melhor e mais apaixonadamente ouvi durante o ano que ainda agora acabou. Obrigado a quem inspirou esta gente a fazer música; obrigado aos que a fizeram.

10. Lily Allen :: Alright, Still
9. Nino Moschella vs Shawn Lee’s Ping Pong Orchestra :: Kiss the Sky
8. Four Tet :: Remixes
7. Oh No :: Exodus into Unheard Rhythms
6. Nomo :: Newtones
5. Ty :: Closer
4. Cibelle :: The Shine of Dried Electric Leaves

3. Spank Rock :: Yoyoyoyoyo














2. Sam the Kid :: Pratica(mente)














1. Ali Farka Touré :: Savane








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E já agora ficam alguns apontamentos e destaques que não cabem na lista de discos para 2006.

2006, uma lista de privilégios:

# Lusofonia, a (r)evolução :: Documentário sobre o entreposto cultural lisboeta e respectiva produção musical. O fio de vida de muita e boa gente escarrapachado em 60 minutos de fita. No fado dos cheirinhos, este filme cheira a alma. Trailer.

# Ao vivo :: Seun Kuti, Kanye West, Buraka Som Sistema, Kode9 & the Spaceape, Bonga. 5 ENORMES privilégios. Já foi dito mas convém não descurar, porque é mesmo para repetir: os concertos certos na altura certa.

# Pantone!! Obrigado mano W! E a toda essa gente desvairada e boémia que foi aparecendo – às 2AS FEIRAS!!! – no Rua e ainda a toda a gente que se deu ao trabalho de tornar o Pantone uma galeria à séria.

# Roots&Routes visto e montado por dentro; sempre muitíssimo bem acompanhado pelo mestre Stellar e a inexcedível Speak crew.

# Drum&Bass do Rio no… Rio.
:: Siga 2007.

7.12.06

Começa hoje...

Há uma bela razão para andar meio alheado do nem1nome. Essa razão é este festival -- para o qual tenho dado uma ajuda -- e que começa hoje. Para informações detalhadas sobre horários, preços e local de venda de bilhetes, bios e muito mais, sigam o LINK

10.11.06

....el pantone es tiranico!

Foi mais ou menos há 5 semanas que o duo luso-polaco Pantone (leia-se: wojtek&chêdas) se estreou na noite Lisboeta. Desde então, e até ao dia de hoje, as noites de segunda-feira passaram a ser ligeiramente diferentes no Rua Bar, Bairro Alto. Boa música, melhores amiga/os, cor p'a caramba, flyers avulso e um punhado de excelentes recordações. Serve este post para agradecer a todas as almas que marcaram presença no Rua até à data (OBRIGADO!) e para vos convidar (a TODOS) para uma noite pantónica especial, desta feita...

5ª feira, 16 de Novembro :: PANTONE :: Rua Bar

PS :: Aqueles que não recebem e pretendem receber a mailing list Pantone, façam o favor de me enviar email ou , acaso não tenham contacto meu, de deixar o vosso email como comentário a este post.

29.10.06

50 faixas.... "that's hot" -- BANKSY vs DM vs PARIS HILTON (2006)

Londres, outra vez. Aparentemente anda meio mundo a tentar perceber quem se esconde por trás do alter ego Banksy. Trata-se de alguém que faz da arte urbana – leia-se qualquer coisa entre o grafitti, o stencil e a intervenção criativa pura e dura – a sua vida e que demonstra ter um discurso social (e político, inevitavelmente) coeso e consciencioso. Talvez o teor das mensagens que tenta passar não seja extraordinariamente profundo ou original – discurso anti-, infelizmente, é norma nos dias que correm – mas é sustentado, fluente e não se entrega à inércia nem a clichés ocos. Se o teor das suas mensagens não é propriamente original, o mesmo não se pode dizer da forma como o transmite. E a forma, neste caso, determina a diferença no meio de tanta indiferença.
Apesar de Banksy permanecer no anonimato, o seu trabalho está longe de ser um segredo bem guardado. A sua arte – de uma maneira ou de outra, apelativa – tem sido frequentemente abordada pela imprensa generalista, umas vezes sob a forma de acusações de vandalismo – ainda que talentoso – outras vezes para lhe gabarem a coragem e criatividade. Mais uma vez, a indiferença fica em casa. Para percebermos porquê, e antes de nos embrenharmos na aventura musical deste artista multifacetado – que também a tem – comecemos por passar em revista algumas das instalações/intervenções (?) mais emblemáticas de Banksy.

Uma das primeiras intervenções com a sua assinatura ocorreu no Zoo de Londres: “we’re bored of fish” escrito em letras garrafais sobre o tanque dos pinguins deve ter sido uma visão cómica. Anos mais tarde, Banksy provocou a inteligentzia cultural norte-americana acrescentado obras suas em sete museus de arte em Nova Iorque. Não desconsiderando os méritos intrusivos/evasivos de alguém que consegue iludir a segurança dos sete principais museus de NY em menos de 24 horas, importa que não deixemos de dar a devida atenção ao conteúdo da intervenção – que afinal, foi motivo suficiente para Bansky sentir que se devia expor a tal risco. As obras acrescentadas consistiam de uma pintura de uma lata de sopa de tomate – que aparentemente não destoou de muita outra arte moderna! – de algumas vacas-sagradas reinterpretadas sob o desígnio da cultura movida a latas de spray e de alguns animais embalsamados e armados pelo exército norte-americano. A carapuça está aí para quem a precisar de enfiar. O Museu Britânico, que também viria a ser vítima da arte de Banksy, optou por integrar um quadro subvertido na sua colecção.
No departamento das intervenções politizadas, Banksy conta com um currículo, no mínimo, impressionante. Viajou para o México para pintar uma série de murais dedicados à causa Zapatista; conseguiu retratar a esperança no muro que se ergue entre Israel e a Palestina (esperança essa que lhe valeu a participação involuntária num tiroteio e que confirmou a sua aptidão para trabalhar em serviços secretos); ocupou um armazém em Los Angeles, decorou-o como se de uma casa se tratasse e juntou ao conjunto um elefante (vivo) pintado com o mesmo padrão do papel de parede com que cobriu o armazém, numa clara alusão ao muito britânico e proverbial “please ignore the elephant in the room”. Se a tudo isto somarmos o facto de Banksy realizar algumas exposições “normais” – ainda que neste caso, “normal” implique coisas como ter dezenas de ratos numa galeria – e de já ter vendido quadros remisturados (tal como as músicas) por pequenas fortunas a gente como Kate Moss – acto que lhe valeu as inevitáveis acusações de “vendido” – começamos a ter noção do peso que este rapaz pode vir a ter na cultura pop deste século.


Resta pois explicar porque raio se está a falar deste valoroso artista num blog que até à data só se debruçou sobre música. Ora bem, há cerca de um mês atrás, Londres era o local escolhido para mais uma original intervenção de Banksy, desta vez acompanhado por um tal de dm. Por ocasião do lançamento do primeiro álbum de Paris Hilton – filha de uma cadeia de hotéis, rainha de (e do) papel, figura pública lançada pelo mediatismo de um par de vídeos porn caseiros que, por representar o antípoda social do vértice que Banksy faz por ocupar, dele se tornou um alvo irresistível – Bansky resolveu substituir cerca de 500 cópias do CD original por 500 versões revistas e melhoradas. E em que é que consistiam essas versões? Por um lado, num booklet reinterpretado aos olhos de Banksy, em que as fotos de Paris surgiam adulteradas e acompanhadas de declarações ácidas e sarcásticas sobre a fama. Por outro lado, o próprio CD contava com uma série de remisturas em vez do alinhamento original. Remisturas essas assinadas pelo tal dm que, a seu tempo, resolveu revelar a sua verdadeira identidade: danger mouse.
É muito mais que uma coincidência feliz que tenha sido Danger Mouse a remisturar os temas. Afinal, estamos a discorrer sobre dois artistas que na sua esfera criativa operam de maneira muito semelhante. Os quadros subvertidos de Banksy não ficam a dever em nada ao amplo legado de mash-ups que lançou danger mouse – a popularidade apareceu depois da “edição” do seu Grey Álbum que misturava com mestria o Black Album de Jay-z com o White Album dos Beatles, fazendo crer que os dois álbuns tinham sido separados à nascença apesar de desfasados no lançamento em quase quatro décadas. Ninguém diria que dois anos depois – the Grey Álbum começou a circular em 2004 – danger mouse seria responsável, entre muita outra coisa, pela produção de um álbum de gorillaz e pelo single deste Verão – crazy, gnarls barkley, goste-se ou não se goste. O atestado de genialidade começa a ganhar contornos bem reais por via da diversificação dos talentos de produção quando o mesmo dm volta a surpreender no último álbum de sparklehorse – banda excelsa do circuito indie, que se associa ao hip hop com a mesma facilidade com que se associa a floribella ao free jazz.
É da junção de esforços destas duas personagens de trajectos sinuosos e inspiradores que surge este belíssimo manifesto, cujo principal mérito é demonstrar que, cada vez mais, urge fazer diferente. Sem querer entrar num despropositado registo de reflexão sobre o papel social e a eficácia intervencionista da arte , parece-me perfeitamente ridículo não reconhecer mérito nestes dois pequenos génios criativos – que o mundo trata de catalogar como “menores” – e que se apoderam, literal e abertamente, de tudo o que o seu “meio” lhes tem para oferecer para lhe retribuírem com transformação. Pegam no igual para fazer o original, pegam no passado e, sem querer, lá estão eles a desenhar (respectivamente, sem e com aspas) o futuro. Numa altura em que as majors se andam a acotovelar para tentarem escapar a um destino certo e determinado por três caracteres – mp3 – em que a imagem se sobrepõe sobejas vezes à música – nada de novo, mas nem por isso menos revoltante – é bom saber que um ou dois génios criativos continuam a ser suficientes para, com vontade, superarem toda e qualquer campanha de marketing. O crime, quando é assim, compensa.

4.10.06

51 faixas…. “new song” – NOMO – new tones (2006)

O afrobeat enquanto género musical, alicerçado em elaborada polirritmia de ascendência africana, metais em ponto de fusão e palavras de instigação, é um estilo que clama desesperadamente para ser reinterpretado e revisto. Apesar de ter tudo para o ser, na maior parte dos casos é apenas revisitado ou regurgitado segundo a mesmíssima fórmula que o viu nascer e inflamar Lagos há algumas décadas atrás. Não que isso seja necessariamente mau – que o digam os felizardos que assistiram este ano à explosiva e memorável reincarnação de Fela Kuti em Sines – mas a abordagem preguiçosa à fórmula vencedora da herança deste ícone incontornável nunca será fiel ao afrobeat, uma vez que falha na sua premissa mais pura e fundamental: a insurreição.



Até à data têm sido os agentes da música electrónica (dançável ou não) e do hip hop os principais responsáveis pela tentativa de recuperação e revitalização deste legado. Se por vezes a coisa até corre bem e se atingem resultados interessantes, a verdade é que na larga maioria dos casos o afrobeat é tratado como conversa de elevador, linha cosmética de segunda categoria que agrada ao primeiro contacto (?) e enjoa ao segundo.

A música do colectivo de jazz dançável nomo vence precisamente por contrariar essa tendência, ainda que displicentemente, de todas as formas e feitios. Nomo cultiva o espírito intervencionista – o rastilho para new tones é a política externa do governo Bush (amarga e prolífica, esta Era) – e, apesar de ser uma formação verdadeiramente clássica no que a afrobeat diz respeito, consegue afirmar-se positivamente pela sua – queixo no chão – originalidade.



As composições nomo são de uma densidade inacreditável. Tudo é cor e calor na secção de metais, nas linhas de baixo pouco menos que ilícitas e na guitarra arrastada e encantatória. Mas, bem vistas as coisas, não seriam esses os trunfos deste estilo na sua década de ouro? Presumivelmente. Acontece que os nomo fazem da malha afrobeat o seu ponto de partida, mas saltam rapidamente para loops de teclados devedores de soul vintage, para flautas e percussões importadas de irresistíveis exercícios funk, para uma serralharia que só eles conhecem – sim, também gostam de inventar instrumentos – para os likembé electrificados dos konono, para o desvairo apaixonado do free jazz de Albert Ayler circa Ghosts. Em suma, um conjunto de referências – entre muitas outras – que estaria certamente destinado ao naufrágio se não fosse capitaneado por alguém incrivelmente talentoso na arte da composição: Elliott Bergman.



É este o refrescante compositor que cita M.I.A., que pede uma faixa emprestada à harpista desalinhada que dá pelo nome de Joanna Newsom, que pega em mil-e-um instrumentos para levar ao delírio audiências um pouco por todo o mundo com a sua visão absolutamente redentora – quase religiosa, gospeliana – da cumplicidade musical. É cada vez mais raro encontrar música assim: sem filtros, crua ao toque e ainda assim celebrativa. Começou por ser banda-sonora de Verão, continua a imperar no Outono. Não é preciso muito para perceber que vai suportar lindamente o Inverno e tudo o resto.

nomo :: NEW SONG

16.9.06

52 faixas…. “empty cans” – the STREETS – a grand don’t come for free (2004)

Escrever sobre the Streets em 2006 não pode ser mais do que um exercício de consagração. Se fosse para bradar aos ventos a chegada de um génio urbano sem par, estaríamos a chegar com um atraso de quatro anos. Ainda assim, e apesar do nem1nome nunca ter vivido na ilusão de fixar movimentos ou de apontar tendências, interessa perceber porque é que este act britânico é tão essencial no aqui e agora.

Antes de tudo, o som. Contextualizando, refira-se que as batidas dos Streets se enquadram na amálgama de descendentes do uk garage que actualmente merece a designação de grime. Herda deste estilo um som sujo, frio e poluto, apropriação bastarda do modus operandi e ferramentas do hip hop que canta o quotidiano de uma classe média/baixa britânica embrutecida e em delicado equilíbrio no eixo emprego/drogas/álcool. Batidas agressivas, palavras sentidas e pouco medidas e sobretudo uma honestidade e discernimento raríssimos no mundo perversamente teatral da música (e não só, claro). Os textos andam única e exclusivamente à volta daquilo que é a vida de Mike Skinner, mentor, executante e compositor que encarna essa colectividade singular que são “os” Streets.

E o que é a vida de Mike Skinner? É roupa que encolhe por ter sido lavada à temperatura errada, é a dor esmagadora de ser rejeitado por quem se ama, é uma noite passada em casa entre a playstation e mortalhas encardidas. Ou seja, um calabouço de vulgaridade que, apesar de devidamente enquadrado na realidade geezer, se exporta sem dificuldade para outras e próximas realidades. Sucumbindo à tentação de pegar em metáforas baratas e brejeiras, dir-se-ia que Skinner conseguiu fazer assentar na perfeição o smog que tantas vezes se faz sentir em Londres – o epicentro deste movimento – sobre a sua sonoridade, e empresta-nos agora a sua versão revista desse nevoeiro contaminado.

Mike Skinner apresentou-se ao mundo com aquele que será, para muita e boa gente, um dos álbuns mais marcantes do início do novo milénio. O nome escolhido para o álbum foi original pirate material e, mais do que se impor a si próprio, deu visibilidade a uma nova linguagem urbana. Original Pirate Material é um punhado de canções acessíveis e exemplarmente inspiradas, adornadas com roupagens que até há bem pouco tempo seriam consideradas menos familiares. Músicas invariavelmente cantadas na primeira pessoa (mesmo que por vezes haja espaço para a contemplação distante) e impressionantemente certeiras, tanto nas batidas como nas palavras que reflectem o quotidiano britânico com um detalhe deliciosamente irregular.

O presumivelmente difícil segundo álbum (no qual se inclui a música que aqui se disponibiliza) conseguiu a proeza de subir a parada. As canções continuam lá, a acutilância da palavra e da produção também, mas Skinner acrescentou ao álbum uma uma identidade narrativa que percorre as onze faixas de a grand don’t come for free e que o eleva, sem o mínimo exagero, ao estatuto de épico. Simplificando, este álbum conta uma história. Uma história em 11 tomos que gira, sempre, em torno de Skinner. A coerência é tão essencial à audição deste álbum que desrespeitar a cronologia dos eventos (leia-se: das faixas) esvazia, dramaticamente, o sentido e impacto da coisa.

A história de a grand don’t come for free? Só ouvindo. Forneçam-se alguns elementos para alimentar a curiosidade: longas filas de espera em caixas multibanco, uma paixão arrebatadora, multas de clubes de vídeo, junk food comprada numa roullote a meio da noite e, como em tudo, amor e desilusão. Vulgar? Nem por isso… há muito que cantar a vulgaridade deixou de ser vulgar.
Ao longo das primeiras dez faixas acontece um pouco de tudo ao nosso pobre companheiro. Para o caso interessa apenas referir que este canalha chega completamente devastado à décima faixa, de coração trinchado, sem saber das suas poupanças, com a televisão avariada e com um par de intrigas mal resolvidas entre si e o seu melhor amigo. A faixa que aqui fica é um testemunho da comovente sinceridade do tipo que escreve estas músicas e é especial porque verbaliza o beco sentimental que tantas vezes habitamos e que não conseguimos ou não queremos assumir. Esta coragem displicente é, afinal, o que separa Skinner de tantos outros comuns mortais que se lançam no mundo da música. Mais humano que isto? Impossível.

Esqueça-se a veia rocambolescamente descritiva de Morrissey (a quem tantas vezes este rapaz é comparado) ou a generosidade de Albarn por alturas de Parklife e compreenda-se que Skinner não toma a decisão consciente de descrever o que o rodeia. Fala do telemóvel porque ficou sem rede, malha nas luzes da discoteca porque está completamente pedrado, não consegue abrir os olhos e vê-se aflito para alinhar dois passos sem cair para cima de alguém. Não há propriamente um método descritivo, não há uma tomada de decisão no sentido de reconstruir a realidade que o rodeia. É movimentando-se nessa necessidade de contextualização para tudo o que lhe toca que Skinner atinge a plenitude do mérito descritivo. Não descreve por descrever, descreve porque precisa da descrição para se fazer compreender.

Retomando a situação de Skinner à décima faixa, e perante o cenário – catastrófico e, no entanto, tão dolorosamente comum – a décima primeira faixa apresenta dois desfechos possíveis. Se vos vieram à cabeça as novelas com direito a votação telefónica para decidir entre final triste vs final feliz, retomem a leitura do parágrafo do texto em que se fala de honestidade desarmante. Final feliz? Nem por isso. Expliquemos porquê:

Ao longo dos primeiros três minutos de faixa temos um skinner revoltado com a vida, feito filho-da-puta ressabiado, disposto a lixar a vida a toda e qualquer pessoa que lhe azucrinar o juízo – o que, tendo em conta o estado de espírito apresentado, só pode querer dizer toda a gente que se cruzar com ele. Nesta primeira abordagem, Skinner opta por viver de costas voltadas para o mundo e afoga-se em auto-comiseração: o negrume que o envolve e que envolve tudo o que o rodeia, a fossa no seu estado mais puro e cego de raiva.


“So here i am in my house, drinking on my own settee; Everyones a cunt in this life, no-one's there for me.”

No entanto, aos 3 minutos e picos de gravação alguma coisa muda. A faixa entra em rewind e tudo recomeça, desta vez com um piano quase apaziguador a envolver as palavras ligeiramente mais calmas de skinner. Diferente? Aparentemente pouco. Afinal, o tipo continua de coração desfeito e isso – apesar de tudo – é o único motivo capaz de, por si só, lhe cavar a fossa. Mas há efectivamente alguma coisa que muda: talvez a predisposição. Skinner começa igualmente desesperado, mas deixa a esperança respirar um pouco e resolve dar mais uma oportunidade ao seu amigo que, voluntária ou involuntariamente, acaba por resolver tudo o que pode resolver na vida de Skinner (arranja-lhe a tv, já não é nada mau). A moça, essa, foi-se mesmo embora. O mesmo não se pode dizer da dor de corno que é virtualmente igual nos dois potenciais finais. O segundo desfecho consegue tranquilizar um pouco porque admite a tal entrada discreta de alguma dose de esperança: se a porca miséria continua lá, a verdade é que à segunda versão ficamos com a impressão que um dia vai passar. Skinner tenta pôr de lado a cegueira, arrisca e faz por digerir o que aconteceu e aceita que os tempos que se avizinham vão ser difíceis, mas – imaginamos – até é capaz de se vir a safar. Magoado para a vida, sofredor como todos, mas com força para se levantar.

É assim mesmo… Não há nenhum final feliz a relatar, nenhum regresso inesperado da amada – acabou, mesmo – nenhuma reviravolta final para nos deixar (ilusoriamente) aliviados. Não. A dor de corno persiste, mas todos sabemos que há mais do que uma maneira de lhe dar a volta. É engraçado e louvável que seja um genuíno mitra de Londres a indicar-nos o caminho. Livros de auto-ajuda? Estimemos que se fodam. Em caso de necessidade, entreguemo-nos a estes 8:14 de sabedoria amargurada do nosso Skinner boy.

EMPTY CANS