49 faixas.... "family feud" :: VON SÜDENFED :: Tromatic Reflexxions (2007)
É cretinamente delicioso chegar ao final de Dezembro e perceber que há um e um único candidato à posição de MC do ano. Posição a ser ocupada por um tipo de não-tão-tenra idade, com um passado (e presente) de arestas bem fendidas por riffs de guitarra, digno ostentador do signo do chauvinismo europeu (com uma ácida agravante chamada Reino-Unido pelo meio). O feliz contemplado com o dito título reencontrou o seu espaço naquele que será o álbum do ano e, pisando sem receios o terreno da musicologia astrológica, do novo milénio. Um álbum, no limite, de electrónica alemã que assinala – sob o risco de instalar uma tempestade estética no ouvinte mais atento – o renascimento do punk!
A história dos 3 acordes pode ser desde já subtraída da equação e na verdade não há que ter receio do caos de referências: os Von Südenfed são nossos amigos e foi com coerência e propriedade que em 2007 fizeram o punk soar ao que sempre devia ter soado. Usam samplers, sintetizadores e parafernália auxiliar (guitarras, claro), atropelam o ouvinte com electrónica enxuta que suporta a melhor neofilologia britânica e fazem a geração digest nu-rave/punk disco corar de vergonha por ser… bem… o que é. Assim como o mais inspirado hip hop, big beat favelado e alguma IDM (Inteligent Dance Music; célebre etiqueta musical que com três letrinhas apenas nos transforma a todos em potenciais imbecis), o espaço sonoro que este trio explora é industriado em batidas originais e na coerente combinação de blips/bloops com palavras suficientemente desconexas para manterem o ouvinte atento e demasiado certeiras para o deixarem alhear-se.

Von Südenfed encaixam na lógica de super-grupo: são o resultado da união de duas pontas que, a bem da verdade, andavam à deriva no marasmo da actualidade musical. De um lado o duo-dinâmico Mouse on Mars (electrónica de inspiração bíblica, apocalipticamente falando), do outro lado o über carismático Mark E Smith, vocalista dos Fall, banda que durante os anos 80 assumiu a função prevaricadora da mais atenta e bocejante inteligenzia britânica. À produção basculante e obesa dos MoM, Smith reage com frases semi-conexas, instigação q.b. e com sentidos quase despertos. Um toaster jamaicano de fígado arruinado e enfadado de morte. Um novelo a várias cores; uma presumível montanha de incongruência que pariu um filho bastardo, mas assertivo.
O nome do grupo é, em si, um décimo-primeiro canto para os Lusíadas. Em termos rasteiros, dir-se-ia que resulta da combinação do nome de uma aldeia alemã (que é referência familiar para metade dos Mouse on Mars) com nome de xarope de tosse. É verdade, mas serve também de útil introdução à ilusória displicência com que estes três músicos encaram o processo criativo. Ilusória porque Von Südenfed é um exercício pleno de premeditado desequilíbrio em que o deboche dos beats (hip hop lango, yo!) convida um presunçoso Mark E Smith a acelerar vocalizações – quase impossível para quem tem tanto para não dizer em tão pouco tempo – e em que o fledermaus tenta a todo o custo impingir uma guitarrada ou outra e estrebucha para que os alemães excessivamente excitados o deixem falar.
Bem-vindos pois a Tromatic Reflexxions, primeiro tomo de uma nova irmandade transeuropeia. Um portento de um álbum em toda a sua extensão: Fledermaus can’t get it abre as hostilidades e cumpre sobriamente (permitam-me: lol) o papel de declaração de intenções – confiram o tom sóbrio no videoclip que deu desde logo nova profundidade ao projecto. Flooded é o hino de toda uma não-geração, a acendalha que possibilitou o regresso em pornográfica forma do Mark E Smith, que aproveita desde logo para reclamar os louros que outros lhe andaram a pilhar nos últimos anos. Por outros, e na integrada visão de Mark E Smith, entenda-se toda a corja de filhos de puta ressabiados que, armados em necrófagos culturais, vivem tão-somente à custa do imenso espólio/legado de sua E.minência. Majestosamente britânico. Mas nem só de dinamite se faz Tromatic Reflexxions R. Há espaço para jardinagem e reflexões sobre a neoescravatura (JBack Lois Lane), para um ensaio sobre a fobia alemã de Osterre, para o verdadeiro regresso dos Fall (The Rhinohead), para sessões de tareia à antiga, para duas ou três notas culinárias e para a inigualavelmente humana Dear Dead Friends.
É relativamente ingrato destacar faixas num álbum que – saltem o parágrafo vivem bem sem clichés – consegue ser tão maior que a soma de cada uma das suas doze partes. Daí que a faixa que a partir de hoje se disponibiliza no nem1nome tenha sido seleccionada por uma funcionalidade do iTunes. Quis o destino – também conhecido como shuffle – que ficasse tudo em Family Feud. 
Seja o que for que os Von Südenfed representam hoje em dia (resulta relativamente óbvio que não é fácil posicionar este álbum) ou que irão representar daqui a uns quantos anos, já fizeram o favor de deixar em domínio público um colossal monumento à capacidade europeia de transformar e capitalizar sobre ruínas – musicais, para o caso. Fizeram-no com particular classe, ao ponto de as tornarem pertinentes outra vez. Talvez a pretensão não seja nova (a estética é), mas o resultado obtido é impecavelmente fresco. Tudo em nome do Progresso, da Arte e de uns quantos litros de Suor. Na sua democrática essência: punk.
VON SÜDENFED :: FAMILY FEUD
PS :: Muito agradecido ao André (fluríco) que me deu Von Südenfed a ouvir, e à Isabel, que me deu ombro para chorar quando, no concerto de Von Südenfed na Apolo em Barcelona, o Mark E Smith resolveu fazer a coisa mais punk que se pode fazer num concerto: não aparecer. We’re European Scum!






Londres, outra vez. Aparentemente anda meio mundo a tentar perceber quem se esconde por trás do alter ego Banksy. Trata-se de alguém que faz da arte urbana – leia-se qualquer coisa entre o grafitti, o stencil e a intervenção criativa pura e dura – a sua vida e que demonstra ter um discurso social (e político, inevitavelmente) coeso e consciencioso. Talvez o teor das mensagens que tenta passar não seja extraordinariamente profundo ou original – discurso anti-, infelizmente, é norma nos dias que correm – mas é sustentado, fluente e não se entrega à inércia nem a clichés ocos. Se o teor das suas mensagens não é propriamente original, o mesmo não se pode dizer da forma como o transmite. E a forma, neste caso, determina a diferença no meio de tanta indiferença.
Apesar de Banksy permanecer no anonimato, o seu trabalho está longe de ser um segredo bem guardado. A sua arte – de uma maneira ou de outra, apelativa – tem sido frequentemente abordada pela imprensa generalista, umas vezes sob a forma de acusações de vandalismo – ainda que talentoso – outras vezes para lhe gabarem a coragem e criatividade. Mais uma vez, a indiferença fica em casa. Para percebermos porquê, e antes de nos embrenharmos na aventura musical deste artista multifacetado – que também a tem – comecemos por passar em revista algumas das instalações/intervenções (?) mais emblemáticas de Banksy.
No departamento das intervenções politizadas, Banksy conta com um currículo, no mínimo, impressionante. Viajou para o México para pintar uma série de murais dedicados à causa Zapatista; conseguiu retratar a esperança no muro que se ergue entre Israel e a Palestina (esperança essa que lhe valeu a participação involuntária num tiroteio e que confirmou a sua aptidão para trabalhar em serviços secretos); ocupou um armazém em Los Angeles, decorou-o como se de uma casa se tratasse e juntou ao conjunto um elefante (vivo) pintado com o mesmo padrão do papel de parede com que cobriu o armazém, numa clara alusão ao muito britânico e proverbial “


É muito mais que uma coincidência feliz que tenha sido Danger Mouse a remisturar os temas. Afinal, estamos a discorrer sobre dois artistas que na sua esfera criativa operam de maneira muito semelhante. Os quadros subvertidos de Banksy não ficam a dever em nada ao amplo legado de mash-ups que lançou danger mouse – a popularidade apareceu depois da “edição” do seu Grey Álbum que misturava com mestria o Black Album de Jay-z com o White Album dos Beatles, fazendo crer que os dois álbuns tinham sido separados à nascença apesar de desfasados no lançamento em quase quatro décadas. Ninguém diria que dois anos depois – the Grey Álbum começou a circular em 2004 – danger mouse seria responsável, entre muita outra coisa, pela produção de um álbum de gorillaz e pelo single deste Verão – crazy, gnarls barkley, goste-se ou não se goste. O atestado de genialidade começa a ganhar contornos bem reais por via da diversificação dos talentos de produção quando o mesmo dm volta a surpreender no último álbum de sparklehorse – banda excelsa do circuito indie, que se associa ao hip hop com a mesma facilidade com que se associa a floribella ao free jazz.
É da junção de esforços destas duas personagens de trajectos sinuosos e inspiradores que surge este belíssimo manifesto, cujo principal mérito é demonstrar que, cada vez mais, urge fazer diferente. Sem querer entrar num despropositado registo de reflexão sobre o papel social e a eficácia intervencionista da arte , parece-me perfeitamente ridículo não reconhecer mérito nestes dois pequenos génios criativos – que o mundo trata de catalogar como “menores” – e que se apoderam, literal e abertamente, de tudo o que o seu “meio” lhes tem para oferecer para lhe retribuírem com transformação. Pegam no igual para fazer o original, pegam no passado e, sem querer, lá estão eles a desenhar (respectivamente, sem e com aspas) o futuro. Numa altura em que as majors se andam a acotovelar para tentarem escapar a um destino certo e determinado por três caracteres – mp3 – em que a imagem se sobrepõe sobejas vezes à música – nada de novo, mas nem por isso menos revoltante – é bom saber que um ou dois génios criativos continuam a ser suficientes para, com vontade, superarem toda e qualquer campanha de marketing. O crime, quando é assim, compensa.




O presumivelmente difícil segundo álbum (no qual se inclui a música que aqui se disponibiliza) conseguiu a proeza de subir a parada. As canções continuam lá, a acutilância da palavra e da produção também, mas Skinner acrescentou ao álbum uma uma identidade narrativa que percorre as onze faixas de a grand don’t come for free e que o eleva, sem o mínimo exagero, ao estatuto de épico. Simplificando, este álbum conta uma história. Uma história em 11 tomos que gira, sempre, em torno de Skinner. A coerência é tão essencial à audição deste álbum que desrespeitar a cronologia dos eventos (leia-se: das faixas) esvazia, dramaticamente, o sentido e impacto da coisa.
Ao longo das primeiras dez faixas acontece um pouco de tudo ao nosso pobre companheiro. Para o caso interessa apenas referir que este canalha chega completamente devastado à décima faixa, de coração trinchado, sem saber das suas poupanças, com a televisão avariada e com um par de intrigas mal resolvidas entre si e o seu melhor amigo. A faixa que aqui fica é um testemunho da comovente sinceridade do tipo que escreve estas músicas e é especial porque verbaliza o beco sentimental que tantas vezes habitamos e que não conseguimos ou não queremos assumir. Esta coragem displicente é, afinal, o que separa Skinner de tantos outros comuns mortais que se lançam no mundo da música. Mais humano que isto? Impossível.